quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O Principezinho


Em Portugal estreou há pouco a adaptação da obra-prima de Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho.
Trata-se de um filme de animação realizado por Mark Osborne, que usa junta duas tecnologias distintas da animação, com funções diferentes: sequências em 3D (tridimensional), que apresentam a história de fundo (a menina e o seu vizinho, o aviador), e as cenas em stop-motion, que mostram alguns dos mais significativos episódios do livro O Principezinho, tal como como vêm na obra de Exupéry. Produzido pela Onyx Films, com argumento de Irena Brignull, o filme original, é em francês.
O filme é mais do que uma simples adaptação da história do Principezinho. E, para mim, trata-se de uma excelente recriação a partir da prosa poética de A. Saint-Exupéry.
E, tal como a genial obra de Exupéry, que parecendo ser feita para as crianças mais se dirigia aos adultos, lembrando embora a criança que há em cada um de nós, também esta película, que as crianças vêem com muito agrado e satisfação, interpela fortemente os adultos.
A terna e incisiva poesia está bem presente ao longo de todo o filme. Os valores — a amizade, a solidariedade, o deslumbramento, a afirmação pessoal, a atenção ao outro, etc. — são patentes e explícitos. Mas, nesta recriação, a crítica mordaz e certeira aos desmandos desta sociedade de consumo manifesta-se com exuberância.
Não é uma estória delico-doce a desta criança, obrigada ser formatada por uma “educação” que só pretende resultados (e excelentes!) e, por isso tudo é programado ao pormenor (mesmo a amizade com alguém!), roubando-lhe a infância, a alegria, a diversão. É uma crítica fortíssima ao cinzentismo desta civilização, à busca desenfreada do lucro.
Impressionou-me muito, entre outros, o plano quase inicial do filme onde, a cidade em que vive a pequenita, se vê a partir do espaço (mais parecendo uma placa de computador!) e se vai aproximando até ao nível das ruas, com o movimento dos veículos e das pessoas. Tudo muito síncrono, muito ordenado, muito igual, onde não há espaço para o diferente, para a poesia. Essa só surge quando, ao lado da casa que a mãe comprou está uma edificação não rectilínea, mas cheia de cor e de natureza a envolvê-la! E que muito vai influenciar a menina.
A película tem ritmo, tem movimento, não é nada monótona. A música está muito adequada e acompanha em perfeição toda a acção. A imagem é belíssima.

Mas, mais importante que estes aspectos técnicos, este é um filme que faz pensar, mesmo a divertir. Para mim, um filme a não perder.

domingo, 15 de novembro de 2015

O "Pacto das Catacumbas"

Há 50 anos: o ''Pacto das Catacumbas'' para uma Igreja serva e pobre*

Catacumbas de Domitila - Ágape

No dia 16 de novembro de 1965, há 50 anos, poucos dias antes do encerramento do Vaticano II, cerca de 40 padres conciliares celebraram uma Eucaristia nas Catacumbas de Domitila, em Roma, pedindo fidelidade ao Espírito de Jesus. Depois dessa celebração, assinaram o "Pacto das Catacumbas".
O documento é um desafio aos "irmãos no Episcopado" a levar adiante uma "vida de pobreza", uma Igreja "serva e pobre", como sugerira o Papa João XXIII.
Os signatários — entre eles muitos brasileiros e latino-americanos, embora muitos outros aderiram ao pacto mais tarde — comprometiam-se a viver em pobreza, a renunciar a todos os símbolos ou privilégios do poder e a pôr os pobres no centro do seu ministério pastoral. O texto teve uma forte influência sobre a Teologia da Libertação, que surgiria nos anos seguintes.
Um dos signatários e propositores do pacto foi Dom Hélder Câmara.

Eis o texto.

Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre

Catacumbas de Domitila - Ágape
Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1)   Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.
2)   Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; Act 3,6. Nem ouro nem prata.
3)   Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.
4)   Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.
5)   Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.
6)   No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.
7)   Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.
8)   Daremos tudo o que for necessário do nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; Act 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.
9)   Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.
10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmónico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. Act. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.
11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:
·         a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;
·         a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adopção de estruturas económicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem da sua miséria.
12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, a nossa vida com os nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que o nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:
·         esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles;
·         suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;
·         procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...;
·         mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; Act 6,1-7; 1Tim 3,8-10.
13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos pela sua compreensão, seu concurso e suas preces.

Ajude-nos Deus a sermos fiéis.

* O Pacto das Catacumbas foi assinado por 42 Bispos de 25 países, representando os cinco continentes. Os 5 bispos brasileiros signatários do documento foram Dom João Batista da Mota e Albuquerque, Arcebispo de Vitória (ES), Dom Francisco Mesquita Filho, Bispo de Afogados da Ingazeira (PE), Dom José Alberto Lopes de Castro Pinto, Bispo Auxiliar de São Sebastião do Rio de Janeiro, Dom Henrique Hector Trindade OFM, Bispo de Bonfim, (BA) e Dom António Batista Fragoso, Bispo de Crateús (CE). Posteriormente, o Pacto foi assumido por cerca de 500 dos 2.500 bispos do Concílio.
Um dos proponentes do Pacto, foi Dom Hélder Câmara, fundador da CNBB e sempre comprometido com as causas sociais no Brasil.
(texto retirado de: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515573-o-pacto-das-catacumbas-para-uma-igreja-serva-e-pobre)